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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O burrinho e o nascimento de Jesus




Finalmente chegamos a Belém. A viagem foi mais longa do que deveria e muito mais penosa do que eu poderia imaginar lá atrás quando vieram me buscar no curral falando que levaria Maria, esposa do meu patrão José, até Belém para que Ela acompanhasse o marido que deveria se apresentar na cidade para o Censo do Erodes.

Cruzamos de Nazaré a Belém em uma jornada insana para um simples recenseamento. No caminho apareceu uma estrela que, segundo Gabriel – Anjo da Guarda de José – é um sinal dos Céus para anunciar o nascimento de Seu filho,  Jesus. Ora, vou confessar que apenas como animal de tração dessa viagem, meu entendimento é limitado com relação a essas coisas. Nunca procurei me intrometer nem entender dos assuntos dos homens. Faço meu trabalho em troca de alimento, água e descanso em pouca sombra que é mais do que o necessário pra comportar o meu pequeno físico. Nunca fui de exigir compreensão nem piedade mesmo de meus donos. Nunca fui de buscar entendimentos ou lógica nas coisas feitas pelos homens, mesmo porque, afinal, eu sou um burro.

Mas tenho de confessar que desde o primeiro instante em que a jovem senhora subiu em meu dorso, um ânimo especial tomou conta de meu espírito como se aquela doce moça na flor de sua formosa juventude carregasse consigo algo de muito especial, de muito valioso. Não senti seu peso em nenhum momento da viagem. Não A ouvi reclamar em nenhum momento – nem mesmo sob o sol forte,  ou sob o frio das noites no deserto, ou de um balanço mais desastrado de minha parte ao subir e descer tantos morros.

Fiz um diário desses dias de viagem indo para Belém. Registrei desde nossa saída de Nazaré, passando pela casa de Isabel, seguindo pelo caminho em marcha bem lenta por conta do valor da carga. Falei das aparições pirotécnicas do Gal (Gabriel) que sempre me assustavam, mas serviam de diretriz para o José. Comentei da teimosia de José em tentar atalhos e se distanciar da Estrela. Apresentei alguns outros animais que nos fizeram companhia em alguns momentos da viagem como um coiote, uma gralha, um lobo e um cervo.

Mas agora chegamos a Belém só nós três. Exatamente como saímos de Nazaré. José já não tem mais sandálias. Eu já não tenho mais ferraduras. Mas ambos temos Maria e em seu ventre Aquele que trará caminhos novos para todas as sandálias e ferraduras desse mundo.

E então chegamos a Belém, finalmente. Mas a cidade está cheia por conta do Censo do Herodes. Pensei que ficaríamos em algum hotel ou num vale com rio de água fresca, onde eu poderia tomar um bom banho e esticar as minhas canelas magras e ressecadas pelo sol e pela poeira das estradas. Mas qual não foi minha surpresa, ainda durante a viagem, ao saber que não tínhamos reservas para lugar algum. José estava contando em se hospedar na casa de alguns parentes – primos pra lá de distantes que nunca conheceu – mas todos em Belém aproveitaram o Censo. Resultado: Não há vagas! Em nenhuma pousada ou casa de parentes.

O que fazer agora? Maria já começava a apresentar sinais de que o menino Jesus não estava disposto a esperar mais tempo pra nascer. José entrou em desespero pelo estado de Maria – mesmo sendo um homem de Fé sem igual – e começou a bater de porta em porta suplicando para darem guarida a sua mulher que estava em vistas de dar a luz. Mas a única coisa que ouvia é que a casa já estava cheia, que não havia lugar pra mais ninguém. O que fazer agora? Eu mesmo sentia a doce senhora se contorcendo sobre meu dorso, enquanto observava a agonia de José correndo por todas as ruas da cidade. Foi então que decidi – e isso Lucas esqueceu de comentar em seu Evangelho– ir até um estábulo que se via a partir do ponto em que eu estava parado com Maria. Chegando lá verifiquei que o local estava praticamente vazio. Os animais ainda estavam sendo recolhidos, os pastores ainda estavam no campo. Só encontrei um boi nas proximidades da entrada do estábulo.

- Ei, ei, ô burro, onde pensa que vai? -  disse ele com grama entre os dentes.

- Viemos de Nazaré e essa Senhora está prestes a dar a luz. Meu patrão procura uma vaga em alguma casa ou pousada, mas ninguém quer ou pode recebê-los. Vendo seu desespero, resolvi vir para o estábulo para que, pelo menos, a Senhora possa se acomodar com mais conforto do que teve durante esse tempo todo no dorso de um burro magro.

- Nazaré? Tenho uns primos por lá. Talvez você os conheça: Jamal, Benjamin, Hod, Halmak, Kauffman…. (e continuaria a ladainha se eu não sentisse um forte chute da barriga de Maria na minha nuca)

- Perdão, Sr….

- Simão, disse ele.

- Perdão Sr. Simão, mas a jovem senhora está muito cansada da viagem e, como o meu patrão ainda não retornou, será que poderíamos entrar para que ela descansasse um pouco até que encontremos uma casa para abrigá-la?

- Claro burrico! E deixa essa coisa de “senhor” para os cavalos dos romanos. Com eles é necessário esse tipo de formalidade.Enquanto isso,eu me deitava para que Maria pudesse tomar lugar de forma mais confortável no meio da palha).

Nisso chegou José, ofegante e com os olhos cheios d’água, exclamando que não conseguira encontrar nenhuma casa para acomodar Maria. A Senhora o tranqüiliza e diz:

- Nosso burrinho me trouxe até aqui e, com as dores que sinto, acho que não teríamos mais tempo para nos acomodarmos na casa de desconhecidos ou em pousadas,  mesmo que existissem vagas. Que seja conforme a vontade de Deus.

José acomodou Maria da melhor forma possível, arrumou o estábulo que já estava limpo e, como o Simão -  o boi entrão – não parava de falar de seus primos e primas (contei 40 durante esse tempo) num mugido misturado com irritantes sons de capim sendo ruminado, colocou-nos pra fora do estábulo.

- Mas Zé, meu velho, eu também? Eu tô quietinho aqui. É esse boi que está fazendo barulho. (reclamei com um zurro longo de indignação enquanto era puxado pelo cabresto)

E ficamos os dois lá fora. Eu, apreensivo com a minha Senhora.

Pelas frestas da porteira, eu vi José separar um balde com água e arrumar uma manjedoura com um pouco da palha guardada no estábulo. Meu coração palpitava e praticamente não conseguia mais ouvir as baboseiras que o Simão falava. Só pensava na minha Senhora e no Seu menino. Só lembrava dos momentos da viagem. Só sentia no fundo de minha humilde alma que algo de extraordinário enchia de graça aquela moça tão delicada e simples. Mas…. eu sou um  burro, e, como tal, não entendo dos misteriosos caminhos que Deus escolhe para os seres humanos.

E no meio desses pensamentos, recordações de viagem e novas esperanças, olhando para a cara do Simão que não parava de falar e ruminar, eu ouvi um choro de bebê. Corri novamente para a porteira do estábulo e vi José erguer um menino pequeno e aparentemente frágil que chorava com a força de uma tempestade.

Passados mais alguns minutos, José veio até a porteira do estábulo e, abrindo-a, disse olhando pra mim e para o Simão:

- Nasceu, burrinho. O menino nasceu. Venham vê-lo.

Nem preciso dizer que dei um passo a frente do Simão e fui me colocar junto a manjedoura pra conhecer a criança. O Simão veio atrás falando alguma coisa sobre um vizinho de uma prima que era garçom fenício em uma lanchonete de comida árabe em Nazaré. Mas eu já não conseguia ouvir mais nada. Junto à manjedoura, voltei-me para ver Maria que parecia dormir um sono merecido. José, ao lado Dela, tinha um sorriso mais iluminado que a própria Estrela Guia.

- Schiiiiiiii!!!!! Vai assustar o menino.  -  disse eu em voz baixa, mas de forma firme para o Simão.

Foi só então nesse momento que ele se calou e veio olhar o menino. E ficamos nós dois ali, olhando a criança. Cada um querendo ficar mais perto da manjedoura. Eu sempre dando uma bronca ou outra nos barulhos que o Simão fazia. Ele, querendo retomar a conversa da garçonete casada com o vizinho árabe que tinha um restaurante de comida fenícia  … ou qualquer coisa parecida com isso. Ele mugindo… eu zurrando… José nos mandando ficar quietos, Maria rindo de forma discreta daqueles dois patetas rodando em volta da manjedoura de seu Adorado Filho.

Mas e o menino? Sim, senhores e senhoras. Tenho de confessar para o desapontamento de muitos de vocês que o menino Jesus era como um menino qualquer que nasce todos os dias em qualquer lugar do mundo. Não vi Legiões de Anjos. Não vi o estábulo ser inundado por canções celestiais. Não percebi nenhuma Luz Divina pairando sobre nós. A pouca luz que havia era de um lampião pendurado numa coluna de madeira do estábulo. Era tão pequena e fraca aquela chama, mas iluminava o suficiente para se ver tudo dentro daquele pequeno espaço. Formava-se, com isso, um jogo de luz e sombras que chamava a atenção do menino na manjedoura. Sombras de um burro e de um boi que rodavam a sua volta. E foi então que, brincando com essas sombras, o menino sorriu pela primeira vez. E seu riso era igual ao riso de qualquer criança. Assim como seu choro, ouvido enquanto estávamos do lado de fora do estábulo, era igual ao choro que qualquer pequenino ser humano quando nasce.

E eu, na minha humilde condição de montaria escolhida para carregar uma preciosa carga de Nazaré até Belém, compreendi que o Verbo se fez carne não para ser diferente da carne, mas para fazer com que todos pudessem perceber que toda carne pode fazer seu trabalho para buscar ser semelhante ao Verbo. 

Feliz Natal!!!

PS:  O Gabriel apareceu dizendo que daqui a pouco chegarão uns pastores com umas ovelhas e também uns reis magros (ou magos, não entendi direito) montados em seus camelos. Só quero ver ter lugar pra todo mundo aqui dentro.

- Bem que agora a gente poderia ir para um hotel, hein José? – disse eu.

- Todos nós já ganhamos o maior presente desse mundo, meu querido burrinho.

E ele estava certo
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  (desconheço o autor)
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