Era um sábado friorento do mês de junho, aniversário de
uma de minhas irmãs, que morava numa cidadezinha do interior, há 78 quilômetros
de distância da Capital onde eu morava.
Todos os anos, amigos e familiares iam para lá comemorar
o seu aniversário, com direito à fogueira, churrasco, comidas típicas, quentão
para esquentar o “Arraiá de Dona Sá”, no Vale do Silêncio. Detalhe: fui eu que
batizei o Sítio, que minha irmã teima em chamar de “Mato”.
Justo naquele dia fui chamada para fazer hora extra na Metalúrgica
onde eu trabalhava. Na carência de grana, aceitei. Trabalharia até às cinco da
tarde.
Pedi para uma de minhas amigas ir comigo. Ela aceitou,
mas de última hora desistiu. Logo pensei: “Depois do trabalho, passo em casa,
tomo um banho bem rápido e saio antes de escurecer. Afinal, serão somente duas
horas de viagem, oitenta minutos de rodovia e mais quarenta minutos de estrada
de chão batido, bem ruim”.
Se chovesse, piorava. Eu não tinha medo, mas não gostava
de pegar a BR à noite. Então, pensei mais um pouco: “Vou levar como companhia, o
“Bingo”, meu cachorro vira-lata, mestiço de pastor alemão”.
E lá fomos nós: Ele todo ancho, porém, feliz da vida com
aquela língua de fora, que mais parecia um bife à milanesa pendurado.
Coloquei para tocar no meu carro, uma fita cassete de
Almir Sater e sai cantarolando.
Quando cheguei à rodovia, já havia escurecido. Mês de
junho escurece cedo. Além do mais, veio a chuva e depois uma serração daquelas.
Quase não enxergava nada pela frente. Sendo assim, fui cautelosa e tomei muito
cuidado à minha direita. Era cada carreta que passava jogando muita água no meu
humilde Uno. Eu ficava com menos visão a cada esguichada d’água.
De repente, um
barulho esquisito nas rodas. Pensei: “Aí meu Deus, essa não! Tudo menos isto.
Pneu furado, não”...
Diminui a velocidade mais ainda, e fui para o acostamento
bem próximo de uma curva por onde eu havia acabado de passar.
A noite era um breu só, com uma leve cortina branca de
serração e chuva fina. Notei que o “Bingo” havia adormecido, mas, logo acordou
todo saliente para ver o que estava acontecendo.
Desci do carro, olhei para um lado e para outro, com uma
lanterna na mão. Aqui e ali, passava uma carreta. Quase não passava carro
pequeno. Eu acenava, e nada de ninguém parar para ver o que estava acontecendo.
Na verdade, nunca precisei trocar pneu. Por problema de coluna, na teoria, eu
sabia como fazer, mas na prática, não.
Outra vez aquele latido forte do “Bingo”, insistente numa
só direção. Ele estava inquieto dentro do carro, e eu o mandando se calar,
quase rogando, mas, ele não obedecia. Olhei para onde ele latia e nada
enxergava.
Atenta, prestei atenção e vi um rapaz com os braços
cruzados, encapuzado. Pensei sobre o porquê de ninguém parar: Ah, é por isto
que o “Bingo” está latindo tanto! E chamei o rapaz.
─ Moço, moço me ajuda... Furou o pneu e eu não aguento trocar sozinha.
Por favor! - ele não respondeu nada, nem saiu do lugar.
Caminhei na direção do rapaz, e num instante ele sumiu. Era
muita coisa para pensar ao mesmo tempo. Criei coragem e fui adiante. Avistei
uma cruz com uma casinha embaixo, e uma vela de sete dias acesa, queimando,
quase no finalzinho. Também havia uma coroa de flores, já murchas. Tomei um
susto daqueles... E o “Bingo” latindo sem parar.
Finalmente, para meu alívio, parou uma carreta atrás do
meu carro, tirando-me daquele sufoco, quando ouvi uma voz:
─ Quer uma ajuda senhora?
─ Sim moço, por favor! Contei a história do rapaz, o
descrevi e ele me disse:
─ Moça, em menos de uma semana atrás, houve um acidente
de moto naquela curva.
─ Moço, será que é o espírito do acidentado vagando?
─ Não sei não, pois mais de um caminhoneiro o viu vagando
ali. Além disso, você pode ver que aquela curva é muito perigosa, muitos já morreram
ali. Olha só senhora, estou com um braço dormente, “pra bem dizer, morto”. Mas
mesmo assim, dirijo porque preciso trabalhar para o sustento da família. Olha
só moça, amo tanto cada um deles, que tatuei esta frase no meu braço. Agora vou lhe ensinar como se troca um pneu,
veja!
Achei tudo aquilo lindo, e seguindo a instrução do
motorista, tirei o estepe, o macaco hidráulico, a chave de roda... E ele só
olhando e ensinado como fazer. De repente, senti um calafrio. Era uma espécie
de arrepio interno. Mas, não era de prazer, era algo muito estranho...
Segui em frente com a troca do pneu. Depois, ele
ajudou-me a levantar o “Robô COP”, o meu carro. Dei este apelido a ele, por ser
metálico.
Com uma das mãos do motorista sobre as minhas, senti
facilmente os parafusos da roda, saírem e depois apertá-los. Com o “Bingo”
ainda insistindo nos latidos para o moço. Pedi desculpas a ele e agradeci pelo
socorro prestado e a atenção.
Com o pneu trocado, segui em frente. Ainda faltavam
alguns quilômetros para chegar ao sítio. Enfrentar aquela estrada ruim foi outro
desafio e uma grande aventura. Desliguei o som e comecei a rezar bem forte, E
com muita fé, continuei a viagem com o “Bingo” mais calmo.
Chegando ao meu destino,
já era quase nove horas da noite. A fogueira já não tinha tantas labaredas. Todos
estavam preocupados, pensando que eu nem iria mais.
Contei o que sucedeu na
rodovia. Falei sobre os detalhes, do começo ao fim. Para meu assombro, ouvi uma
conversa nada agradável. Não foi só de uma pessoa, mas de várias, inclusive de minha
irmã.
Contaram-me que naquela
curva onde furou o pneu do meu “Robô COP”, uma semana antes, aconteceu um
acidente. A vítima foi um rapaz de moto, e que ontem, aconteceu outro acidente envolvendo
uma carreta.
Alguns dos convidados
que anteciparam a viagem, viram quando passaram por lá. O motorista morreu com um
braço para fora da janela, nele havia uma tatuagem escrita: “Amo minha família”.
Dora Duarte